sexta-feira, 5 de março de 2010

Vaivém

«Quantas horas ainda, antes do silêncio seguinte, não são horas, não será o silêncio, quantas horas horas ainda, até ao próximo silêncio? Ah saber o que se espera, saber esta coisa sem fim, esta coisa, esta coisa, este emaranhado de silêncio e de palavras, de silêncios que não são silêncios, de palavras que são murmúrios. Ou saber que continua a ser vida, uma forma de vida, destinada a ter um fim, como outras tiveram um fim, como outras poderão ter um fim, antes da vida acabar sob todas as suas formas. Palavras, palavras, a minha vida nunca foi senão isto, esta babel de silêncios e de palavras, a minha vida, que eu digo acabada, ou ainda por chegar, ou ainda em curso, conforme as palavras, conforme as horas, contando que ainda dure, desta estranha forma. (...) como se houvesse duas coisas, outra coisa para além desta coisa, o que é essa coisa inominável, que eu nomeio, nomeio, nomeio, sem a usar, e chamo eu a isso palavras. É que eu não encontrei as palavras adequadas, aquelas que matam, vindas das agruras deste infesto pasto ainda não me subiram à garganta, desta torrente de palavras, com que palavras nomear as minhas palavras inomináveis. (...) Todavia, tenho esperança, juro, de poder um dia contar uma história, mais uma, com homens, espécies de homens, como no tempo em que não duvidava de nada, de quase nada. Mas primeiro tenho de me calar e continuar a chorar, de olhos bem abertos, para que o precioso líquido corra livremente, sem queimar as pálpebras, ou o cristalino, já não sei o que é que ele queima. Olha podia ser este o tom, e o teor, a estupidez de uns soluços? Seria bom demais. Aliás, nem uma lágrima, nem uma, haveria mais motivo para me rir. Também não. Sério. Vou ser sério, vou deixar de ouvir, vou-me calar e ser sério, chegou a hora, voltou a hora. E voltarei a falar, quem sabe, para dizer uma história, na verdadeira acepção das palavras, da palavra dizer, da palavra história, tenho esperança, uma pequena história, aos seres vivos que vão e vêm num aterra habitável recheada de mortos, uma história curta, no vaivém do dia e da noite, se as palavras que restam chegarem até aí, tenho esperança, juro.»

amor por Beckett

amo delírios enrolados em palavras inomináveis e nomeio nomeio nomeio até perder a ponta do novelo

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